domingo, 18 de maio de 2014

Dia 18 de Maio e Copa do Mundo: o que há para celebrar?

Dia 18 de Maio e Copa do Mundo: o que há para celebrar?
Alexandre Gonçalves

Corria o ano de 2009. Eu trabalhava como coordenador nacional do Programa CLAVES quando participei de um evento na Câmara Municipal de São Paulo para tratar do enfrentamento e prevenção da violência contra crianças e adolescentes. Naquela ocasião uma das falas ficou à cargo da Dra. Maria Amélia Azevedo, precursora e referência nacional nessa temática. Como era de se esperar a mesa principal estava composta por vários vereadores, dezenas deles, os quais nunca haviam levantado um dedo em favor das crianças em situação de risco. Mas lá estavam eles, fazendo bem o seu papel de aparecer na foto que seria manchete no dia seguinte na principal cidade do país.

Feitas as incontáveis e cansativas honrarias da casa, a Dra. Maria Amélia foi convidada a assumir o microfone e fazer sua apresentação. Havia uma grande expectativa por aquela apresentação, não somente de minha parte, mas de muitas outras pessoas como pude perceber nas conversas de corredor. E como era de se esperar a fala da Dra. Maria Amélia foi impactante, mas não do modo como muitos esperavam, principalmente os vereadores presentes. Logo de início ela afirmou: “a violência contra a criança e o adolescente começa aqui nessa casa.” Ela seguiu denunciando com enorme indignação a quantia irrisória de dinheiro investido pela prefeitura em educação, a ausência de programas específicos de prevenção, a inexistência de um sistema integrado de notificação, o sucateamento dos conselhos tutelares, dentre outros assuntos que geraram um enorme, mas extremamente necessário, desconforto entre os presentes. Por ocasião de mais um 18 de Maio, Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, e há um mês da Copa do Mundo as palavras da Dra. Maria Amélia me vieram à minha mente.

A disparidade entre o que foi gasto na preparação do Mundial – não só na construção superfaturada dos estádios e das chamadas obras de acessibilidade urbana (muitas inacabadas), mas também na segurança, reforçada para conter as manifestações que certamente se intensificarão – e o montante investido na infância e adolescência é gigantesca. Informações recentes e proveniente do próprio governo federal dão conta que os custos da Copa do Mundo no Brasil giram em torno de R$ 25,6 bilhões. Isso representa um número quase dez vezes maior do que o previsto, quando o país foi eleito para sediar o Mundial, há sete anos.

É importante ressaltar que, comparado com investimentos em outros setores, o investimento público nessa população é historicamente baixo, e não pode ser colocado somente na conta do atual governo. A possibilidade de sediar jogos da Copa do Mundo também fez com que os olhos de muitos governadores e prefeitos brilhassem, bem como os de seus amigos empreiteiros.

Há nessa disparidade histórica, ressaltada recentemente pela Copa do Mundo, uma relação perversa entre o poder econômico e a violação dos direitos humanos. Sabe-se, tanto por meio da imprensa, quanto dos profissionais do sistema de proteção à infância e adolescência e de pouquíssimos parlamentares envolvidos com o tema, que os canteiros de obras dos estádios que sediarão o Mundial da FIFA serviram como ponto para a exploração sexual de crianças de até 12 anos de idade. Ou seja, mesmo sendo o Brasil referência mundial com relação a uma legislação específica destinada para proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes, o ECA, e estando há alguns anos sob os holofotes da imprensa internacional, não conseguiu fiscalizar adequadamente sequer os principais palcos da grande festa que calcula-se, será assistida por aproximadamente 3,6 bilhões de pessoas em todo o mundo. Tampouco a FIFA sinalizou interesse em participar das discussões sobre o tema da exploração nos arredores dos estádios. Afinal, eles estão em um negócio, e não dispostos a contribuir para resolver os problemas sociais dos países por eles temporariamente colonizados.

Não se trata aqui da preocupação do Brasil em passar vergonha diante do mundo, mas de não se envergonhar diante de si mesmo, ao se dar conta de que, para sobreviver, meninas e meninos que deveriam estar estudando em escolas descentes tem os seus corpos e dignidade violados por alguns minutos em troca de alguns reais. Mas como diriam dois meninos pobres de outrora, agora adultos enriquecidos graças ao futebol e inúmeros contratos de publicidade, “não se faz Copa do Mundo com escolas”.

Não há como generalizar e dizer que nada foi feito. O Brasil realmente avançou desde a criação do ECA. Sistemas de notificação e denúncia foram criados, assim como conselhos nacionais, estaduais e municipais da criança e do adolescente, conselhos tutelares, varas da infância e da adolescência, equipes multidisciplinares de atendimento, acordos e convênios com organizações nacionais e internacionais de defesa de direitos, meios de arrecadação de impostos voltados para a infância e adolescência, etc. E é justamente pelas sementes que foram plantadas nesses anos que vejo como inadmissível que crianças e adolescentes continuem a serem comercializados neste país. Eu, como tantos outros profissionais, acreditamos na potencialidade do ECA, desde que ele seja plenamente e constantemente colocado em prática, não somente por este ou aquele governo, mas por toda a sociedade, como preconiza o estatuto.

Mas a julgar pela atual e abominável prática da exploração sexual comercial próxima ou distante dos estádios – não importa –, e pela ineficiência do poder público na tomada de providências urgentes, parece haver mais orgulho em sediar um mundial e atrair turistas, atraindo bilhões de reais para o setor privado, do que a honra de contribuir para a erradicação de da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes deste país.

Trabalhando há quase 10 anos com a prevenção de diversos tipos de violência contra crianças e adolescentes, tenho plena consciência que a tarefa de sua erradicação é extremamente complexa. O problema envolve múltiplos fatores, como falta de educação sobre a sexualidade, frágeis laços familiares, incapacidade dos adultos em lidar com suas frustrações ou fantasias, incapacidade de ver a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e não como objetos, cultura do consumo, machismo, sexismo, questões econômicas (no caso da exploração sexual comercial), dentre outros. A erradicação, se possível, será lenta e processual, e deverá envolver toda a sociedade em diversas frentes de atuação.

O sistema da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, assim como qualquer outro sistema opressivo e desumano, em última instância, faz daqueles que nele estejam envolvidos todos vítimas. Tanto a criança e o adolescente explorados sexualmente, a família pouco informada (ou tantas vezes conivente), os/as aliciadores/as, facilitadores/as, clientes, bem como todos/as aqueles/as que silenciam para a realidade da exploração, estão inseridos no ciclo da violência. Vítimas e vitimizadores são escravos de um sistema perverso que desumaniza a todos. Para romper com esse ciclo é preciso reconhecer sua existência, indignar-se contra ele, agir apropriadamente, seja na prevenção, no apoio às vítimas, na denúncia dos envolvidos para que sejam devidamente responsabilizados, e na cobrança constante das autoridades para que realizem seu papel, principalmente no que se refere à prevenção. Quando não lutamos para romper o ciclo da violência, contribuímos para sustentá-lo.

Naquele dia de 2009, a Dra. Maria Amélia Azevedo terminou sua desconcertante fala repetindo o que escreveu durante décadas e que motivou e continua a motivar diversos profissionais, mas que parece continuar passando ao largo dos administradores públicos: a questão da violência contra a criança e o adolescente é um tema de orçamento público.

Falar de investimentos maciços em educação, saúde, cultura, etc., já se tornou um lugar comum nesse país   Mas imagine o impacto que R4 25,6 bilhões bem investidos somente na prevenção e no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes teria a curto e médio prazo. Não se pode afirmar que com esse dinheiro se garantiria a erradicação do problema, pois há inúmeros fatores subjacentes a ele, como citei anteriormente. A questão é se existe vontade política para tal.
Que este 18 de Maio também sirva para nos conscientizar que nenhum candidato à cargo público deverá ter nossa atenção sem antes dizer o quanto pretende investir na infância e na adolescência, tanto para promovê-los enquanto seres humanos, quanto para protegê-los de situações de risco.

Alexandre Gonçalves
alexandre.gonca@hotmail.com
Consultor em Prevenção da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes – Programa CLAVES Brasil
Mestrando em Teologia com ênfase em Estudos da Paz

Ministro da Igreja da Irmandade

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