quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

GOVERNANÇA AMBIENTAL NO SÉCULO XXI

1. Porque o debate?

Embora a prova da degradação ambiental fique cada vez mais evidente e que existam hoje mais de 500 acordos ambientais multilaterais, a capacidade e a vontade política dos governos para fortalecer a ação e implementação destes acordos parecem ser cada vez menores. O argumento do crescimento econômico como primeiro passo para conferir dignidade de vida a todos forma a base de um paradigma que está fortemente presente nos círculos governamentais e empresariais que detêm alguma hegemonia na condução de políticas do desenvolvimento, sobretudo no Brasil. Apontar desafios de conservação ambiental ou recuperação de áreas degradadas como obstáculos do “desenvolvimento” ou lacunas e anomalias de acordos e sistemas multilaterais parece ser também vetor de manutenção desse mesmo paradigma e do “status quo” das forças políticas e econômicas hegemônicas, por vezes “esverdeadas” com discursos ou ações pontuais de compensações ambientais e de eficiência no uso de recursos naturais.

Por mais de 30 anos, governos e analistas vêm identificando os problemas do sistema ambiental da ONU, que se traduz pela ausência de coerência, eficiência, informação adequada, eqüidade e financiamento adequado. Ao mesmo tempo, surge a idéia de que a magnitude e a complexidade dos problemas ambientais globais ultrapassam a capacidade das instituições existentes.

Um dos motivos para esta situação pode ser identificado na complexa fragmentação da governança ambiental internacional, demonstrando múltiplas atribuições e papéis, distribuídos em instituições de varias esferas e segmentos e a falta de coordenação. A maioria dos acordos ambientais não tem metas claras que facilitem e viabilizem a implementação das medidas propostas. Tampouco há garantia de financiamento adequado para a implementação dos mesmos, e os países em desenvolvimento sofrem com os altos requisitos para cumprir com os relatórios de implementação e até mesmo com a garantia de participação nas conferências e reuniões de negociação sobre os acordos.

Algumas dificuldades nos acordos existentes incluem o enfoque inadequado dos impactos ambientais globais provocados pela globalização econômica, tais como a fragmentação, a existência de mandatos e acordos que seguem uma lógica setorial para a gestão ambiental, os mecanismos de arbitragem fracos e a falta de visão holística sobre a governança ambiental internacional. Do ponto de vista político, constatam-se discrepâncias entre compromissos e ação, bem como a falta de uma base política forte, o que tem contribuído para o fracasso de integrar efetivamente o meio ambiente na arena macroeconômica.

Esta fragmentação se mostra, por exemplo, nos casos da água ou energia, elementos essenciais para a sobrevivência da humanidade. Atualmente, 1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável e mais de 2 bilhões de pessoas nos países em desenvolvimento não têm acesso a serviços de energia. Para lidar com esta situação, existem hoje mais de 20 organizações dentro da ONU que tratam destes temas, mas a coordenação e impacto destas ações são pouco visíveis.

Fora das instituições da ONU, outras instituições, como o Banco Mundial e outros organismos de desenvolvimento multilaterais, também desempenham um papel na implementação de políticas e projetos relacionados ao meio ambiente.

2. O que é governança?

Considerando a crise ambiental atual, céticos poderiam dizer que instrumentos e instâncias internacionais não são instrumentos adequados para a gestão sustentável do meio ambiente, e que ênfase deveria ser dada às instituições governamentais locais e nacionais. Outros diriam que instrumentos e organizações do Poder Público são pouco efetivos, e que maiores resultados para a gestão e conservação ambiental poderiam advir da crescente utilização de enfoques econômicos, do mercado em particular, e envolvimento dos agentes empresariais.

Do nosso ponto de vista, não se trata exclusivamente de uma ou outra vertente, mas sim de garantir que instrumentos, inclusive acordos internacionais, possam ser efetivamente conhecidos e ter a sua implementação efetivada, seja pelos governos locais e nacionais, pelas instituições da ONU e organizações financeiras multilaterais, como pelo setor privado. Para isso, entendemos que é necessário que todas as pessoas e a sociedade em geral, especialmente por intermédio de organizações da sociedade civil, possam estar sensibilizadas, conhecer e mobilizar-se em prol da conservação ambiental, dos princípios e diretrizes de sociedades sustentáveis, nas quais a dignidade de qualidade de vida de todos os seres, a democracia, a diversidade, a justiça, entre outros valores, sejam acessíveis para todos.

O desafio, portanto, é criar e aprimorar condições de governança, local a global, valendo-se inclusive dos regimes multilaterais, de instrumentos de comando-controle (ou seja, associados ao Poder Público regulamentado e gestor de interesses de toda a sociedade) e de instrumentos econômicos (através dos quais o mercado e as empresas assumem os custos ambientais e sociais de suas respectivas atividades).

O conceito de governança refere-se ao conjunto de iniciativas, regras, instâncias e processos que permitem às pessoas, por meio de suas comunidades e organizações civis, a exercer o controle social, público e transparente, das estruturas estatais e das políticas públicas, por um lado, e da dinâmica e das instituições do mercado, por outro, visando atingir objetivos comuns. Assim, governança abrange tanto mecanismos governamentais como informais e/ou não estatais. Significa a capacidade social (os sistemas, seus instrumentos e instituições) de dar rumo, ou seja, orientar condutas dos estados, das empresas, das pessoas em torno de certos valores e objetivos de longo prazo para a sociedade (Born, 2007).

Em reunião realizada em agosto de 2007, o Grupo de Trabalho Mudanças Climáticas do FBOMS definiu governança como “a capacidade da sociedade determinar seu destino mediante um conjunto de condições (normas, acesso à informação e à participação, regras para a tomada de decisão) que permitem à coletividade (cidadãos e sociedade civil organizada) a gestão democrática dos rumos do Estado e da sociedade”.

Como dito em outro trabalho (Born, 1999) a análise da situação e possível evolução da governança ambiental global de alguns regimes – como, por exemplo, o de mudanças climáticas - devem ser feitas também considerando a abordagem sistêmica no marco de regimes internacionais. O estudo destes regimes internacionais, isto é a utilização de uma abordagem analítica aplicada aos processos de contratação inter e transnacional, pode ajudar tanto a compreensão como a efetividade dos mesmos como a construção dos mecanismos e condições de governança, na perspectiva da cidadania planetária.

Do ponto de vista genérico, considera-se que regimes são instituições sociais, governando as ações daqueles envolvidos em um conjunto de atividades específicas (Young, 1989). Constituem-se de práticas e procedimentos, abrangendo papéis e regras, a serem desempenhados e aplicados pelos próprios agentes que desempenham tais papéis.

Porter e Brown (1991) preferem conceituar regime como um sistema de normas e regras especificadas em um instrumento multilateral legal entre Estados para regular as ações no tocante a um determinado problema. Assim, para esses autores, um regime poderá se apresentar a partir de um ou mais instrumentos legais, tais como uma convenção ou convenção-quadro. Esta define os princípios, objetivos e normas gerais, podendo ou não ter compromissos obrigatórios mais específicos, que em geral são negociados e detalhados em documentos legais posteriores, conhecidos como protocolos.

Podemos seguir outros autores, que também contemplam como regimes certos acordos não explicitados em um documento legal, posto que muitas vezes (ou em quase todas) os regimes se formam a partir de arranjos informais, administrativos e/ou políticos, e somente a partir de certo estágio tomam a feição de uma convenção ou outra forma legalmente vinculante. Assim, mantém-se a perspectiva e influência histórica na análise do regime (Born, 1998) e a possibilidade de construção e fortalecimento de condições de governança, nas esferas nacional e global, ao longo da evolução do regime.

Dadas a multilateralização e a globalização das relações internacionais, assistimos a um número crescente de iniciativas de regulação internacional em temas como meio ambiente, segurança, desarmamento, direitos humanos, saúde, resíduos e substâncias perigosas. Tal processo esteve relacionado à distensão Leste-Oeste no início dos anos 1990, mas no início do século XXI houve um deslocamento do foco das relações internacionais para temas que estejam relacionados à segurança de todas as nações, após os eventos de setembro de 2001 e as guerras no Afeganistão e Iraque, entre outras. Não obstante, esse processo indica também uma tendência crescente para a definição de mecanismos de “segurança internacional ou planetária”, que não se restrinjam aos conceitos clássicos de segurança militar a potenciais bélicos. Inclui-se também a segurança alimentar das populações humanas, o equilíbrio ecológico e a proteção e promoção da saúde pública, o desarmamento, etc. (Born, 1998)

3. A arquitetura da governança ambiental internacional

Comparado com outros regimes como os de saúde, comércio ou política econômica, a arquitetura para o regime do meio ambiente carece de articulação e coerência. Uma primeira questão, em debate há anos, é se os desafios e responsabilidades ambientais deveriam estar articulados e organizados no âmbito de uma instituição única, ágil e eficiente, de respaldo global, vinculada ao sistema ONU, ou se, como atualmente, os regimes multilaterais ambientais podem cumprir seus objetivos a partir de esquemas fragmentados. Durante os anos, as responsabilidades ambientais, em vez de se consolidar dentro do PNUMA, têm se espalhado através de muitas organizações incluindo: 1) as agências especializadas da ONU, como a Organização Mundial de Meteorologia, a UNESCO, a FAO e outras, 2) os programas da ONU como o PNUD e o Programa Mundial de Alimentação; 3) as comissões econômicas e sociais regionais da ONU; 4) as instituições de Bretton Woods (como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional); 5) a Organização Mundial de Comércio; e 6) o Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF). Esta fragmentação resultou em sobreposições, brechas e dificuldades
do sistema em responder a problemas ambientais globais.

Maria Ivanova em “Architecture of Global Environmental Governance” (em: Global Environmental Governance – Perspectives on the Current Debate, 2007) apresenta argumentos encontrados na literatura que defendem a multiplicidade de programas e organizações na governança ambiental internacional através de uma sobreposição produtiva, criando um tipo de multilateralismo competitivo que melhoraria a eficiência das atividades. Por outro lado, argumenta que competição e redundância podem ser desnecessárias e provocar prejuízos. Podem até existir resultados incompatíveis entre as atividades e incongruências com o direito internacional. Cita como exemplo os Organismos Geneticamente Modificados que são tratados com regulamentos bem mais rigorosos na Convenção da Diversidade Biológica que na Organização Mundial de Comércio.

Ainda no mesmo artigo, Ivanova apresenta a arquitetura da governança ambiental global, usando como exemplo as atividades ambientais em 12 áreas (agricultura, poluição atmosférica, biodiversidade, químicos, mudanças climáticas, desertificação, energia, pesca, florestas, espécies invasoras, comércio de espécies ameaçadas e água) nas quais atuam os 44 membros do Grupo de Gestão Ambiental, que foi criado, em 1999, para melhorar a coordenação das políticas ambientais na ONU. O resultado deste estudo mostra uma enorme complexidade, com 26 organizações ativas no âmbito de mudanças climáticas, 29 em químicos e 31 em água. No Brasil, se tomarmos como exemplo a gestão de águas, os comitês de bacia hidrográfica reúnem dezenas de instituições e segmentos governamentais, privados e da sociedade que de alguma forma interferem ou são relevantes para se exercer a conservação e uso sustentável dos recursos hídricos.

Este texto foi retirado da Cartilha "Governança ambiental internacional: Perspectivas, Cenários e Recomendações" produzido pelo Fórim de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS).