terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Para além da Maioridade Penal

Alexandre Gonçalves*
De tempos em tempos a história se repete: algum artigo ou editorial de um grande jornal brasileiro, pretendendo-se isento de “paixões e ideologias”, apresenta sua posição em relação ao ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), quase sempre reduzindo sua atenção a um ponto específico: os adolescentes em conflito com a lei e a consequente necessidade da redução da maioridade penal. O editorial em questão, cujo título é “ECA não recupera menor infrator e desprotege sociedade”, é do jornal O Globo, de 15 de fevereiro de 2015.

Não há dúvidas que a questão da maioridade penal mereça ser continuamente debatida pela sociedade, mas isolada, ela tende minimizar a responsabilidade do poder público em zelar pelo bem estar integral das crianças e adolescentes. Mais do que uma abstração, esse conceito de bem estar integral envolve a implementação de ações e políticas que garantam um desenvolvimento físico, emocional e intelectual saudável às crianças e adolescentes, além de proteção contra quaisquer violações desses direitos. Enquanto tivemos nossos olhos voltados exclusivamente para uma discussão na esfera criminal, chamada frequentemente de “situação irregular”, não vamos compreender (e nem nos preocupar) com as demais questões envolvidas na implementação daquele que é um exemplo internacional de legislação.

O ECA nunca foi pensado para “recuperar menor”, como o editorial equivocadamente sugere. O título do artigo é pobre conceitualmente, porque não compreende o papel do estatuto em sua inteireza, e tendencioso ideologicamente porque reduz a discussão em torno da criminalidade, insinuando que o ECA “protege menor infrator“. O editor escreve que “a lei revelou-se incapaz de fazer o poder público cumprir obrigações no resguardo de jovens infratores“!! O ECA, assim como qualquer outra legislação, depende do compromisso do poder público e da sociedade como um todo para colocá-la em prática, e não o contrário. A Lei obriga, mas diante da sistemática negação de seu cumprimento, muitos concluem que é mais fácil dizer que ela é ineficaz do que cobrar providências daqueles que são os responsáveis por implementá-la; no caso do ECA, todos nós! Falamos exaustivamente – muitas vezes desqualificadamente – sobre a necessidade de punição do adolescente em conflito com a lei (e não “menor infrator”), mas discutimos pouco a responsabilização do Estado (em todas as esferas) e da sociedade na efetivação do ECA. Invertemos a lógica! Tente pensar a afirmação acima do editorial em relação à Constituição Brasileira. Diante do fracasso em cumprí-la, vamos simplesmente dizer que ela é fraca, paternalista e repleta de falhas? Vamos nos eximir da  responsabilidade de colocá-la em prática e dizer que o caos se instaurou porque a lei é “branda”, e não porque não nos comprometemos o suficiente com ela? Tais perguntas não querem sugerir que não exista a necessidade de aprimoramento das leis, pois de fato, existe, mas apenas questionam a inversão da lógica da responsabilização no cumprimento delas. O ECA é ótimo exemplo dessa dinâmica de aprimoramento, cuja revisão de conceitos, textos e expressões, demonstram que não se trata de uma lei inflexível e ultrapassada, como o editorial de O Globo pretende mostrar.

O ECA, do ponto de vista legal, é um documento de vanguarda. No entanto, como qualquer lei, depende não somente que as políticas públicas atreladas a ele de fato aconteçam, mas também de um questionamento dos paradigmas que mantemos sobre as crianças e adolescentes. Culturalmente, como diz o psicólogo e amigo Gustavo Sales,  parece que estamos alguns milênios atrasados, porque socialmente nós endossamos certos paradigmas que supostamente pretendemos superar, como o conceito da criança como uma “propriedade” dos pais e tutelada pelo Estado, e não como sujeito de direitos e pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Há um conflito direto e constante entre esse paradigmas. Um outro paradigma poderosíssimo é o já mencionado “menor infrator“, cuja atenção está voltada para a “situação irregular” da criança e do adolescente, ignorando todo um contexto que produz e sustenta tal situação. Gustavo aponta o paradoxo ao afirmar que, se por um lado pedimos avanços (seja no texto da lei ou na efetivação das políticas públicas elaboradas com base nessa mesma lei), por outro não rompemos de fato com os velhos paradigmas. Tratamos, social, política e economicamente, a criança e adolescente como objetos de posse da família ou de intervenção do Estado, e não como pessoa em condições e necessidades específicas. Nos fixamos no que a criança e o adolescente fazem de errado, e não no que nós adultos deixamos de fazer, enquanto sociedade, para garantir que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados. Ou seja, gostamos de debater o ECA, mas ainda não nos desapegamos dos paradigmas do antigo Código de Menores, que só olhava para o “menor” quando ele estivesse fora da esfera moral estabelecida pelo Estado: fora da escola, fora de casa, vivendo nas ruas ou cometendo crimes, ou seja, quando estivesse incomodando a sociedade.

Por exemplo, o editorial de O Globo se mune de estatísticas para alarmar a sociedade, fomentando uma sensação de descontrole social, fruto de uma suposta impunidade que o ECA provoca. Mas onde é que tudo isso começa mesmo? O governo federal acaba de cortar cerca de R$ 8 bilhões da educação, praticamente todos os governos estaduais  e municipais tem enormes dificuldades em elevar o nível da escolarização e qualidade de ensino. Tenhamos o exemplo do governo do estado de São Paulo em vista, que recentemente tem fechado salas de aula a ponto de colocar 80 alunos no mesmo espaço, isso sem falar da desvalorização do professor, da falta de acesso à cultura e oportunidades reais de mudança de vida, não somente para os adolescentes (erroneamente[?] chamados de “menores” no artigo), mas também para suas famílias.

O que põe em xeque a eficácia do ECA não é o 001-002“paternalismo do Estado”, nem a curva ascendente da criminalidade, como diz o editorial, mas a negligência sistêmica  em cumprir o que está previsto em lei e uma tendência constante de criminalização da juventude. O editorial ainda diz que o ECA é “pródigo em listar direitos de menores de idade, [percebem o velho paradigma?] mas parco em lhes cobrar responsabilidades.” Só diz isso quem não leu ou não compreendeu o objetivo do estatuto, que apresenta medidas sócio-educativas (debatíveis, é verdade) as mais variadas para adolescentes em conflito com a lei. Como disse uma vez o amigo Gustavo, “não conheço nenhum adolescente que foi passar férias na Fundação Casa”. Além do mais, o próprio conceito de direitos (e não deveres) da criança e do adolescente é a porta de entrada pela qual deve-se abordar o estatuto: o princípio da reciprocidade. Ou seja, sendo esses direitos individuais e coletivos, as crianças e os adolescentes que deverão ter seus direitos reconhecidos e respeitados são também os indivíduos que deverão reconhecer e respeitar os direitos de outras crianças e adolescentes. Esse é um processo educativo de médio e longo prazo, cuja responsabilidade não poderá ser delegada a outrem, senão assumida integralmente pela família, sociedade e Estado. Mas no tocante à questão da criminalidade, cabe perguntar: se nem o sistema penitenciário é bem sucedido na ressocialização de detentos adultos, por quais motivos se cobra tanto que as instituições como a Fundação Casa sejam melhores, sendo que estas instituições tem o mesmo Estado como responsável pela qualidade do serviço? Além disso, há outras questões de fundo, como a pobreza e o status dos envolvidos. Compare os crimes de colarinho branco ou cometidos por adolescentes ricos com aqueles cometidos por adultos e adolescentes negros e pobres. Agora verifique a taxa de condenação e encarceramento entre essas populações. O Estado brasileiro – que já tem a terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás somente de EUA e China – é que é pródigo em descumprir com suas obrigações, e tenta nos convencer de que a redução da maioridade penal, que jogará um número maior de adolescentes nas prisões para lá apodrecerem, é a solução para a acabar com a criminalidade.

Não se trata, evidentemente, de simploriamente dizer que o Estado é o grande produtor da criminalidade, embora não se possa negar que tem boa parcela de responsabilidade por ela. Também não se pode negar que testemunhamos diariamente a realidade de crimes (por vezes hediondos) praticados por adolescentes, cujas motivações são as mais distintas. Mas não nos enganemos: sempre haverá crimes de grande impacto cometidos por adolescentes que serão cinicamente e oportunamente capitalizados por algum governante a fim de comover e convencer a população de que a redução da maioridade penal é a solução para a onda de violência. No entanto, esse mesmo governante pouco ou nada discutirá sobre o que de concreto e prático seu governo faz para a efetivação do ECA no que diz respeito ao desenvolvimento integral de todas as crianças e adolescentes. A doutrina da prioridade absoluta, por exemplo, significa, dentre outras coisas, a disponibilidade de recursos públicos, e a falta deles é uma ótima medida para observar o quanto o Estado viola os direitos das crianças e adolescentes. Como certa vez bem disse a professora e defensora do ECA, Maria Amélia Azevedo, as crianças precisam ser também prioridade no orçamento público.

Entretanto, quando se noticia o envolvimento delas com o tráfico ou com algum crime extremamente violento, somos bombardeados por estatísticas que no final das contas acabam responsabilizando somente o indivíduo (o vagabundo, o preguiçoso, o trombadinha, o psicopata juvenil) ou culpabilizando a família pela “má educação” que deu ao/à filho/a. Não consideramos as variáveis que levam a cada indivíduo a cometer um crime, e concluímos apressadamente que se trata simplesmente de uma questão de decisão pessoal. Assim somos induzidos a crer em um padrão, no qual todos os adolescentes, e especialmente aqueles em conflito com a lei, são indevidamente inseridos. Generalismos do tipo “o adolescente sabe muito bem o que está fazendo”, “se tem idade para votar, tem consciência sobre seus atos”, etc., fazem parte dessa dinâmica de culpabilização exclusiva do indivíduo que não considera outros fatores que podem ser determinantes para suas atitudes.

Enfim, não há respostas fáceis, mas penso que o foco na criminalidade é reducionista, equivocado, e atende a muitos interesses, menos os daqueles chamados no papel de sujeitos de direito, mas que na prática acabam servindo apenas como bodes expiatórios da ineficácia e negligência do Estado e da sociedade (em geral, porque há que se reconhecer que existem ótimas iniciativas em curso, boa parte delas executadas pela sociedade civil).

Portanto, as discussões pontuais sobre a violência cometida por crianças e adolescentes devem ser precedidas de uma discussão mais ampla sobre a violência cometida contra crianças e adolescentes, especialmente a negligência institucional que adia a implementação integral do ECA. Qualquer debate que esteja focado na criminalidade é míope em relação às condições que geram e mantém essa criminalidade.
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Alexandre é Consultor na Programa CLAVES Brasil e colaborador da Rede FALE