quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Igreja, eleições, direito e liberdade

Anderson Moraes*

 

Este artigo é produto do debate sobre “Voto de cajado”, promovido no dia 22/9/2012, em Belo Horizonte, pela Rede Fale e pela Aliança Bíblica de Profissionais de Belo Horizonte (ABP-BH)

A chamada “minirreforma eleitoral de 2009”, feita pela Lei n. 12.034, publicada em 30 de setembro daquele ano, trouxe inovações alardeadas pelos meios de comunicação, a exemplo da regulamentação das campanhas pela internet e a criação do voto em trânsito. Por outro lado, uma singela obra desta Lei, relativa à inserção de um quarto parágrafo no corpo do art. 37 da Lei n. 9.504/1997 (conhecida como “Lei das Eleições”), foi muito pouco comentada.

A Lei n. 12.034 equiparou a bem de uso comum quaisquer propriedades a que a população em geral tenha acesso, como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, estádios, ginásios e templos. A finalidade dessa equiparação é expressamente submeter a veiculação de propaganda eleitoral nesses ambientes à vedação de que trata o art. 37 da Lei n. 9.504/1997 (embora a Resolução n 22.178/2008 do TSE já assim considerasse). Segue o texto:

Art. 37. Nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do Poder Público, ou que a ele pertençam, e nos de uso comum, inclusive postes de iluminação pública e sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, fixação de placas, estandartes, faixas e assemelhados.(Redação dada pela Lei nº 11.300, de 2006)

[…]

§ 4o Bens de uso comum, para fins eleitorais, são os assim definidos pela Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil e também aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)

Desde então, tornou-se muito mais farta a jurisprudência sobre propaganda eleitoral irregular no interior de igrejas evangélicas, revelando histórias vergonhosas de desvio do culto. No Recurso Eleitoral n. 5.899, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Minas Gerais negou recurso a candidato a vereador de Belo Horizonte que foi condenado a pagar multa em razão do ilícito antes comentado. No processo, uma testemunha havia narrado o que aconteceu durante um culto:

(...) eu assisti todo o culto, no início é música ao vivo, depois o bispo fala. Em um momento mencionou sobre as eleições no outro dia, falou que seria a grande vitória deles e perguntou: posso contar com vocês? Os fiéis responderam que sim. Depois foi entregue um envelope com a foto de [nomes omitidos], somente para os chefes de turma, que ficaram em primeiro lugar. No final, colocaram uma mesinha próxima a porta de saída, repleta de santinhos. Um rapaz, ainda no interior da Igreja, distribuiu santinhos para todos que saiam da Igreja, conforme este modelo que recebi (…).

Infelizmente, esse não é o único ilícito em que igrejas são citadas em acórdãos da Justiça Eleitoral – repetem-se a cada eleição os casos de captação ilícita de sufrágio e de abuso de poder econômico.

A captação ilícita de sufrágio é objeto do art. 41-A da Lei n. 9.504/1997. A inserção deste artigo é fruto de uma das poucas leis de iniciativa popular já viabilizadas, a Lei n. 9.840, de 1999, de especial interesse para os cristãos brasileiros. O projeto de lei de iniciativa popular resultou de um movimento com origem na Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e que, mais tarde, na fase de coleta de assinaturas, recebeu relevante apoio do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O “caput” (parte principal) do art. 41-A diz que:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990. (Incluído pela Lei nº 9.840, de 28.9.1999)

Ocorre captação ilícita de sufrágio somente quando reunidas e comprovadas as seguintes circunstâncias: doação, oferta, promessa ou entrega de bem ou vantagem pessoal a eleitor, com finalidade eleitoreira, ou seja, de obtenção de voto.

No Acórdão n. 1515, o TSE cassou diploma de suplente de deputado no Amapá, considerando que houve captação ilícita de sufrágio e abuso de poder econômico, com base, inclusive, na prova testemunhal. A seguir, leia-se o que contou uma testemunha:

Com efeito, na pág. 70 dos autos, a testemunha [nome omitido] afirmou que na época da campanha eleitoral os "obreiros" da igreja foram obrigados a doar alimentos para a organização de cestas básicas a serem distribuídas para a população carente e a conseguir 33 (trinta e três) votos, tudo em benefício do investigado e de um outro candidato ao pleito de 2006.

Nas págs. 72/73, a testemunha [nome omitido], na parte final de seu depoimento, aduziu que quem recebesse tal cesta básica estaria comprometido a votar no candidato [nome omitido], bem como, que nos cultos que participava havia "pressão", ou seja, coação para que votasse no impugnado, inclusive tendo deixado de comparecer aos cultos da Igreja [nome omitido] por conta desta.

Na pág. 74, a testemunha [nome omitido] também afirmou que freqüentava a Igreja [nome omitido] na qual o impugnado era Pastor, mas que deixou de freqüentar por conta das "pressões" referidas, entre elas a afirmação de que "quem não votasse nos candidatos da igreja seria amaldiçoado por Deus".

Ademais, na pág. 91 dos autos, constante na cópia do Inquérito Policial nº 244/2006, juntado aos autos, há uma cópia de uma "carta para os obreiros, evangelistas, jovens e membros da Igreja [nome omitido]" na qual encontram-se os seguintes dizeres, com alto poder coercitivo moral:

"É com imensa satisfação que estamos aqui com vocês há 2 anos nesta luta contra as forças espirituais do mal, que têm feito de tudo para tentar destruir vocês".

Sabemos que não tem sido fácil, mas, em nome do senhor Jesus, juntos nós vamos vencer essa guerra. O segredo da vitória é nunca esmorecer. É preferível morrermos lutando que nos entregar-nos [sic] nas mãos de nossos inimigos, que são os demônios que querem nossa destruição.

Como líder espiritual de vocês, gostaria de chamá-los para uma guerra espiritual entre as forças do bem e do mal, que querem nossa destruição, bem sabemos que usam as pessoas que se deixam influenciar por eles, para darem com ímpeto contra os que são do bem, para tentar destruí-los.

No passado Deus usou os seus servos, a exemplo de Daniel, José, Ester, Davi e outros, para, através deles, fazer o bem. E, o mesmo Ele quer fazer hoje através de seus servos.

Quando você precisou de Jesus, você pode contar com Ele? Será que Ele pode Contar com você agora? Pense bem!!! Quem é de Deus luta ao lado do bem e não do lado do mal. Peço o seu voto e o de sua família para o pastor [nome omitido], para deputado federal, e para o pastor [nome omitido], para deputado estadual, que são os meus candidatos. E, desta já agradecemos, na certeza da vossa compreensão e que Deus vos abençoe, em nome de Jesus.

Bispo [nome omitido]".

São ainda conhecidas algumas denúncias de doação, oferta, promessa ou entrega de bem ou vantagem a igrejas, e não propriamente a pessoas, também com finalidade eleitoreira. Nesse caso, não se pode em captação ilícita de sufrágio, uma vez que é condição daquele art. 41-A que a vantagem seja individualizada. Nesse sentido, o Acórdão dado no Recurso Eleitoral n. 8241 pelo TRE do Paraná, sobre fato ocorrido no município de Pato Branco. A denúncia contou que houve doação de dinheiro e desvio de uma bateria de propriedade do município, tudo em favor da igreja, em troca de apoio político do pastor e dos fieis. Apesar disso, o TRE considerou que não houve captação ilícita de sufrágio, pois não houve individualização da proposta. Segue um trecho do julgado:

A peça vestibular veio acompanhada de declaração firmada por Atair Pinto de Lima, pastor da Igreja, relatando a oferta de dinheiro em troca de apoio político e a doação do instrumento musical (bateria) à Igreja, também visando o apoio dos fiéis (fls. 27/29); do auto de apreensão da bateria supostamente doada, comprovando que a mesma era de propriedade do município de Pato Branco (fl. 30); de boletim de ocorrência lavrado pelo maestro da Banda Municipal, noticiando o delito de apropriação indébita da bateria (fls. 31/34); de fotos do templo da Igreja e da bateria que teria sido doada (fls. 47/51)

[…]

Ademais disso, ainda que tivesse sido cabalmente comprovada a alegação, a meu ver, a conduta impugnada não configura captação ilícita de sufrágio.

Isso porque, para que se configure a conduta do art. 41-A há necessidade de um “vínculo de permuta”, o que significa que a vantagem oferecida não pode ser irrisória e que deve ser individualizada (i.e., deve haver como que um “contrato” verbal entre o candidato e o eleitor, em que um se compromete a dar a vantagem e outro se compromete a dar seu voto).

Tal “contrato” não restou demonstrado no caso em análise, onde teria havido a entrega de um bem a uma comunidade, no caso dos fiéis da Igreja “Jesus é o Rei”, inexistindo individualização da proposta ou condicionamento daquele benefício àqueles que votassem nos recorridos.

Outro caso interessante foi examinado pelo TRE do Piauí no Recurso Eleitoral n . 774. Certo deputado foi acusado de doar R$3.000,00 a uma igreja durante um culto e de distribuir, em outra oportunidade, “profetinhas” (versão “gospel” dos santinhos), na rua da igreja, dentro de envelopes de um projeto evangelístico. O Acórdão inocentou o deputado das acusações, uma vez que não ficou demonstrado, pela prova testemunhal, que a doação teve finalidade eleitoreira, o que fez acreditar tratar-se de mera doação, daquelas que cotidianamente fazem os fieis. Além disso, a propaganda foi feita nas imediações da igreja e não em seu interior.

Esses últimos casos demonstram que algumas ações podem escapar do controle do Direito, mas não ficam isentas do debate feito do ponto de vista ético-cristão. Está de acordo com o ideal de integridade bíblica o candidato que não faz propaganda dentro da igreja, mas na rua da igreja, de modo ainda assim dirigido aos fieis daquele templo? As igrejas devem aceitar ofertas de candidatos quando feitas em período eleitoral, ainda que sem aparência eleitoreira? Desobedeceria ao “não tomarás o nome do Senhor em vão” o candidato que entrega panfletos de sua campanha dentro de envelopes de projeto evangelístico? Dá exemplo de retidão a igreja que recebe instrumento musical desviado do patrimônio público por candidato?

A pergunta que nos é mais importante, contudo, é esta: aguardaremos que o Direito venha ditar quais outras condutas são vedadas no que toca a igrejas, fieis e eleições?

A tradição jurídica brasileira tem uma natureza tutelar. Isso quer dizer que nosso Direito é pensado tendo em vista o hipossuficiente, que é, numa relação, a parte que sofre o resultado das condições desiguais em que vivemos.

Essa vocação tutelar do nosso Direito, na maioria das vezes muito elogiada, é apenas relativamente boa. É boa porque, atenta à realidade, dá resposta ao fato de que as pessoas não são efetivamente iguais e, portanto, nem sempre são efetivamente livres para tomar decisões.

Assim, o Direito não reconhece, por exemplo, a liberdade de o trabalhador renunciar à limitação de jornada, considerando que na relação entre trabalhador e capitalista não há verdadeira liberdade em favor do primeiro, que naturalmente aceitaria condições degradantes de trabalho desde que necessitasse do emprego para sobrevivência. Nisso mesmo reside o lado mau da notícia, pois, para estabelecer-se, a norma tutelar teve de presumir uma não-liberdade, sendo a falta de liberdade um fato que verdadeiramente nos entristece.

O Direito Eleitoral também traz normas tutelares. O faminto troca seu voto por uma cesta básica porque ele é livre? Não! Se a outra opção é passar fome, na verdade não há outra opção e ele troca seu voto por questão de sobrevivência. Aqui está a não-liberdade.

Para os cristãos, a conclusão a respeito daquele quarto parágrafo do art. 37 da Lei n. 9.504 é triste, pois sua inserção no texto legal presumiu uma não-liberdade por parte dos fieis de igrejas. Via de regra, as leis são feitas como resposta a um fato indesejado, visando a evitar sua continuidade. Logo, essa disposição da lei faz acreditar que os fieis não têm discernimento próprio e, por conseguinte, estão desprotegidos e sujeitos a políticos desonestos, ou seja, estão em condição de não-liberdade. Só existe uma lei eleitoral que disciplina as igrejas porque nós, evangélicos, tornamos indisciplinados e usamos de forma equivocada nossa liberdade.

Ora, a primeira igreja evangélica brasileira (Igreja Evangélica Fluminense) tinha em seu estatuto que a aceitação de alguém como membro estava subordinada à libertação de seus escravos. Aqueles pioneiros acreditaram que o papel da igreja é apregoar a liberdade entre os homens e não a escravidão. Quando foi que perdemos esse rumo, a ponto de deixar entender que no seio de nossas comunidades não mais há liberdade?

Por fim, conto que, há muito tempo, abandonei uma igreja. Meu pai ficou por lá mais tempo até indignar-se em um episódio. O pastor da igreja foi afastado por líderes mais altos em razão de ter-se recusado a apoiar o candidato “oficial” da denominação. Curioso, estudei o assunto e descobri que no estatuto da denominação foi inserida a obrigação de os ministros alinharem-se aos candidatos apoiados pela liderança mais alta da igreja.

Saltamos de um modelo de igreja embasado na liberdade para um outro escorado no cabresto? A igreja deixou de ser dispensadora da graça para tornar-se instrumento de escravização da vontade política? O que de fato representamos hoje?

Nota: os nomes citados nos acórdãos estão omitidos, embora estes, naturalmente, sejam públicos e estejam publicados no sítio eletrônico do TSE (tse.jus.br) e nos sítios dos Tribunais Regionais Eleitorais de cada estado

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* Anderson Moraes é Formado em Direito, Presbiteriano, Membro da Aliança Bíblica Profissional de Belo Horizonte

2 comentários:

ABP Rio/Niterói disse...

Muito bom o artigo, que dá esclarecimentos pertinentes e úteis para o esclarecimento dos fiéis. Grata e Parabéns.

RSE ABP RJ disse...

já escrevi anteriormente: Parabéns ao Anderson pelo artigo, esclarecedor e útil.