terça-feira, 23 de junho de 2015

Não leia se seu preconceito for maior que uma vida ou... antes dos 16

Silvana Bezerra Magalhães


Enquanto alguns insistem na meritocracia, na história do "eu lutei e venci"," eles também podem se quiserem", "a gente escolhe o que vai ser" e coisas desse tipo, eu vou olhando e escutando as histórias ao meu lado, ou melhor, do lado de lá da cidade.  Naquela parte da cidade em que alguns nunca ousaram pisar ou, se já foram, não viram realmente. Sempre gostei de olhar e escutar para aprender de verdade sobre a vida sobre o mundo, sobre o outro.

Olhar é uma coisa complicada, a gente vê o que quer ver, a gente não vê o que não quer. Os olhos são a entrada da alma. Não é por acaso que Jesus falou dos olhos, se os olhos forem bons, tudo se ilumina, se os olhos forem maus você só vê trevas nos outros. Você vê as trevas dos seus olhos cegos...

Hoje encontrei de novo o P., menininho pequeno, cabelo por cortar, pele negra esbranquiçada e ressecada pelo frio aqui da serra. Corpinho magro, ressequido pela pobreza e também pela falta de carinho,  nunca ninguém se preocupou em hidratar sua pele ou sua alma. Olhos espertos, espertos e tristes, tristes e desconfiados. A mesma idade do meu filho Pedro, oito anos, a mesma inicial dos nomes. As semelhanças acabam aí. O meu Pedro aprendeu a ler "sozinho" aos quatro anos. Claro, "sozinho", apesar dos livrinhos de tecido que com seis meses já líamos pra ele, das letras no quarto, da estante cheia de gibis. O P. não sabe ler, "cabeça fraca" como dizem os mais simples... Nunca teve um gibi, nem uma voz pra contar histórias ou canções de ninar antes de dormir.

Chego na escola onde ele estuda, estrada de chão, um quadro e carteiras, os computadores nunca funcionaram, o P. nunca mexeu num tablet ou computador, mas vê um todo dia no comercial da TV e sonha em ter também.

Pergunto para o P. sobre a mãe dele: "Ah, minha mãe ainda tá bebendo, tia".

Pergunto então sobre seus sonhos. Sempre pergunto sobre os sonhos das crianças. Os sonhos delas me explicam muito sobre o mundo em que vivem. Criança tem que viver num mundo em que seja autorizada a sonhar com nuvens de algodão doce, com princesas e dragões.. Já vi crianças que o maior sonho era ser manicure, ganhar cesta básica, o pai ficar bem de saúde, isso não é sonho pra criança.
Os sonhos das crianças desse lado da cidade são sonhos possíveis. Nunca ouço sobre ser astronauta ou arquiteto. Esses são os sonhos dos meus filhos. A gente só sonha sonhos possíveis, ou impossíveis quando vivemos num mundo que nos dá licença pra sonhar. Quem sonha não precisa pensar na sobrevivência o tempo todo. Mas o P. tem que pensar em sobreviver e sofrer o menos possível , se der.

"Meu maior sonho é que ela pare com a cachaça, tia". Esse é o sonho do P.  Na verdade ele não sonha nada pra ele, ele sonha um sonho lindo para a mãe, sonha com a mãe do comercial de margarina que ele viu na TV, ou apenas com a mãe por perto de verdade, sem ser levada pelos devaneios etílicos. E junto com a cachaça da mãe a desgraça ainda vem acompanhada do distúrbio mental, da mendicância, do cair na rua,  se machucar, ser machucada, abusada. "As vezes ela vai pra casa tia, outras ela dorme da rua. Eu fico triste...". E usou uma palavra elaborada para menino pequeno: "eu me sinto péssimo tia..."

O que será que sente um menininho de oito anos que vê a mãe jogada na rua e se diz péssimo? Nessa hora a gente engole seco, respira fundo, continua conversando para o silêncio não virar lágrimas. E fica pensando se deveria ter perguntado sobre sonhos num mundo em que não se permite sonhar, só sobreviver.

Até o ano passado ele morava com a mãe. Agora a tia resolveu criar, aquela solidariedade que só os "desgraçados do mundo" sabem compartilhar. Família de onze num pequeno apartamento doado para as vítimas da enchente, dois  dos filhos com deficiência, um não fala, o outro tem problema, sofre de convulsão toda hora. E a mocinha da casa as vezes vende o corpo pra ganhar uns trocados, pra sentir que alguém a quer, também não sonha, sobrevive. A caixinha com os sonhos cor-de-rosa e a roupa de princesa há muito empoeiraram num canto esquecido da alma.

Com tudo isso ainda encontraram um cantinho e um colchão para o P. Ali ele pode estar mais protegido do que morando na rua com a mãe que tem "problema de cabeça".

Só que nessa luta do dia a dia não dá tempo para lembrar que o menininho de oito anos ainda é uma criancinha, que precisa de proteção. Não dá tempo de lembrar disso tudo quando se tem que sobreviver. Então a rua cuida, ou descuida. Toda vez que vou lá no bairro fora da hora da escola encontro P. na rua, com os meninos maiores, solto pelas desventuras de se criar sozinho.

"Tia eu não gosto de apanhar, os grandes me batem sempre", ele me conta. E pra conter a raiva do mundo, ele também bate nos pequenos. Dos pequenos ele pode ser o chefe para se livrar do ódio da vida, da tristeza daquela semana que a mãe não voltou da rua, da raiva e da dor da surra dos grandes.

Mas dizem por aí que todos tem as mesmas oportunidades não é mesmo? Não é isso que ecoa pela mídia, pelas redes sociais, pelas falas de tantos, até ditos seguidores do Nazareno? "É só querer?"
E eu lembro do meu Pedro, que sonha em ser astronauta, que lê livros de duzentas páginas, que fala francês, brinca de lego e gosta de queijo "brie". Iguaizinhos, mas separados por um fosso de desigualdade já antes de nascerem...

É mentira, a vida não é igual para o P. e para o meu filho. Os olhos de muitos jogam o P. no fosso do mérito. Não é uma questão de escolha dele.

A escola do P. tem quase trinta pares de olhos curiosos, uma sala pequena, cinco séries diferentes estudam numa sala. Só lembrando, aqui é sudeste, onde me contam ser a região mais rica desse imenso Brasil. A professora dele é a grande heroína que tenta, sofre, luta, viaja todo dia atravessando a cidade pra tentar salvar o P. Mas é uma luta tão difícil, um contra o mundo.

E insisto de novo em perguntar sobre o sonho. Pergunto para o P. aquela pergunta boba que adulto gosta de fazer: o que ele quer ser quando crescer. A prima dele, que também estuda na mesma sala, já tinha me dito que volta e meia ele fala que quer ser bandido.

Onde o P. mora o bandido tem a moto mais maneira, o carrão, a roupa da moda, as meninas gostosas. E o bandido é "gente fina", dá bala, chocolate às vezes, tem cara de gente feliz, tem cara de chefe, de dono do pedaço, as vezes P. sonha que o bandido é o pai que ele nunca conheceu.

Então o P. me olha, sorri maroto e não me conta que está pensando em ser bandido. Depois abaixa os olhinhos marotos,  que logo ficam tristes de novo. Os olhos perdem o brilho do sonho, o de ser bandido e ele pensa no mundo possível. Ainda de olhos abaixados e bem baixinho me responde: "quando eu crescer eu vou capinar"... Eu pergunto de novo para ter certeza do que tinha ouvido: "quero capinar" ele fala ainda de cabeça baixa. Cabisbaixo com quem se contenta com a desgraça, que se contenta com o que ele sabe que é a escolha dos fracassados no mundo do mérito.

O P. sabe o que é possível, as escolhas são poucas. São as duas coisas que ele pode ser naquele mundo: capinar como o tio, viver na miséria sem dentes e mãos doloridas, cheirar a morte do veneno diário na plantação de flores da região ou virar bandido. São os mundos que nós permitimos que ele conheça, são as opções de mundo que ele tem...
E eu saio de lá com o coração apertado, do jeito que só quem sabe o que é a desgraça do mundo vai entender. Saio de lá com uma certeza doída  de que se tivesse nascido P. também escolheria ser bandido...

Essa história é verdadeira, se passou em algum lugar na serra fluminense. Não sei escrever ficção. Que pena que não é ficção. Histórias parecidas com essa se repetem todos os dias, agora, hoje, nesse instante em tantos cantos dessa cidade e desse país.
Nesse mundo que aos poucos vai transformando crianças em "monstros".
Contei isso para alguns que choraram comigo pelo P.
O que será que falaremos dele daqui a oito anos, quando tiver 16?
                                                                                                               


Silvana Bezerra Magalhães é evangélica, Professora universitária do CEFET-RJ e Doutora em Educação

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