segunda-feira, 6 de abril de 2015

GUERRA NO COMPLEXO DO ALEMÃO, REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA

Renan Porto



O primeiro a escrever sobre o conceito de genocídio foi o advogado russo de origem judaica Raphael Lemkin. Em 1944, contexto de ocupação nazista na Europa, foi publicado o seu livro Axis Rule in Occupied Europe. Lemkin pensava o genocídio relacionado com a ideia de colonização europeia sobre as Américas em que a identidade do povo oprimido é destruída e a identidade do opressor é imposta. Seu conceito de genocídio é mais amplo do que a ideia de um imediato extermínio de massa e mostra como o genocídio deve ser entendido como a desconstrução dos elementos que constituem a identidade de um povo. Assim podemos entender o genocídio como processo que pode levar uma certa continuidade de ações e não apenas como uma violência imediata contra um povo.

Essa reflexão nos leva a outra perspectiva sobre o que acontece com a população negra no Brasil, que sempre foi marginalizada e desconsiderada não só pelo Estado, mas também pela própria sociedade. A violência policial nas favelas, como acontece neste momento no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, não pode ser algo analisado isoladamente, pois é um fato recorrente e cotidiano em diversas periferias do Brasil que mata milhares de jovens, majoritariamente negros, e viola a dignidade das populações locais, tudo sob a justificativa retórica da guerra às drogas ou da pacificação. Há também de considerar que mais de 75% da população carcerária brasileira é não-branca, o que mostra a seletividade racial do sistema prisional. Isso mostra um processo de dizimação da população negra, que além da violência explícita sofrida por parte do Estado é também negada nas suas manifestações de identidade cultural e religiosa. Por exemplo, a representação midiática da mulher negra de nariz afilado e cabelo liso mostra de forma clara a imposição de uma identidade branca.

Diante disso, a forma como o Estado lida com a segurança pública é absurda. Ao contrário de assumir a responsabilidade de acabar com essa violência contínua sobre as populações mais pobres e de garantir os seus direitos e as condições para o exercício de sua cidadania, setores conservadores do Congresso Nacional propõem reduzir a maioridade penal, o que possibilita mais encarceramento e punição. Ao invés de investir nas vias de acesso aos direitos negados ao povo negro e pobre, o Estado adota políticas de punição e extermínio, como se a favela e a pobreza fosse uma sujeira a ser varrida cada vez mais para as margens ou uma epidemia a ser dizimada. Eis a pátria educadora.

É preciso entender que o racismo vai além de nossas relações sociais cotidianas e está presente no processo de formação do Estado brasileiro, que desde a colonização europeia tem seus aparelhos institucionais sempre ocupados por gente branca, assim, o racismo é algo que atravessa o Estado e influencia as suas políticas públicas de acordo a identidade da supremacia branca ocidental como modelo a ser seguido. E, portanto, a garantia dos direitos da população negra deve passar também pelo reconhecimento do direito dos negros existirem como povo, com sua própria cultura, sua própria forma de ser, e não com a inclusão nos modelos brancos.

Ontem foi páscoa e a memória da ressurreição de Jesus nos preenche e nos enche de esperança. Deixemos que essa memória da vida de Jesus faça florescer em nós o desejo de alteridade para que possamos aprender a ter uma postura não de tolerância, mas, sim, de hospitalidade e acolhimento para com aqueles que são nosso outro e que o Espírito Santo possa nos libertar do impulso colonialista de converter o outro à nossa identidade. Lembremos da parábola do bom samaritano: quem socorreu o homem judeu ferido e jogado à margem não foi um dos que possuíam sua mesma identidade, mas, aquele que para ele era outro. O verdadeiro amor deve ir além da identidade, pois o meu outro é todo aquele que eu possa ver. E num mundo com tantos que são invisibilizados devemos aprender a ver aqueles que por terem sido empurrados para as margens das nossas cidades estão longe da nossa visão. Assim como Jesus fez indo para Galileia, periferia de sua época, possamos também ir ao encontro dos que estão à margem.

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Renan Porto é Estudante de Direito e membro da Coordenação Nacional da Rede FALE

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Eu sei que é 1º de Abril…

Diego Ferreira



Hoje é dia 1º de Abril. Tal dia foi instituído como o jocoso dia da mentira, ou o dia dos bobos, por volta do século VI na França, onde o ano novo era comemorado no dia 25 de março marcando o fim do inverno rigoroso do hemisfério norte e inicio do esplendor da primavera quando a natureza aflora por todos os lados e a fauna está no cio ou na hora de dar a luz as ninhadas. Como extensão desse mundo natural, muitos povos organizavam grandes festas, e na França não era diferente. A festa da primavera durava uma semana, acabando por volta do dia 1º de abril.


Mas em 1562, o papa Gregório XIII instituiu um novo calendário que estabeleceu o começo do ano no dia 1º de janeiro como o conhecemos hoje. No entanto, o Rei francês só adaptou seu calendário dois anos depois da decisão do pontífice, dando origem a um descompasso e uma enorme confusão entre o inicio das festas da primavera com o inicio do ano que agora deveria ser comemorado também. Da tal confusão, principalmente entre os povos alheios às decisões politicas e os motivos do papado, surgiram grandes brincadeiras, como a tal confusão onde muitos aldeões chamavam os desavisados (“bobos”) para festas que nunca existiriam, muitas delas datadas para o dia 1º de abril.

Esse ano como nos últimos anos somos todos tratados como “bobos”. Desde a Constituição de 1988, que considera que crianças e adolescentes devem ter pleno direito ao desenvolvimento e serem respeitados e tratados com dignidade, muitos não querem esquecer ou simplesmente negam a existência esse ideal. Desde 1993 que percebemos algumas tentativas de acabar com um consenso internacional da maioridade aos 18 anos, com tentativas de emendas constitucionais que vão de encontro com cláusulas pétreas (cláusulas que não podem mudar na Constituição sem que a mesma tenha que ser refeita).

A ideia de que reduzir a maioridade penal para menos de 18 anos sempre gira em torno de imaginar que se os jovens forem responsabilizados mais cedo terão medo de cometer crimes, sobretudo contra a vida das pessoas, modificando os argumentos do campo da racionalidade para o campo do medo. Poder prender parece uma solução para a violência. Um argumento facilmente desmontado uma vez que se nós formos aos dados do Mapa da Violência (e outros trabalhos afins), perceberemos que: há muito mais jovens vítimas de crimes do que cometendo crimes (e essas vítimas tem cor, são na grande maioria negros); criminalidade tem mais a ver com falta de oportunidades de educação e trabalho do que com uma suposta má índole das pessoas; e a grande maioria de jovens hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, que cumprem medidas socioeducativas (que infringiram alguma lei) as cumprem por tráfico de drogas ou associação ao tráfico, o que de fato nega o tal medo de crimes ligados à morte. Ou seja, “os menó que rodam na pista não estão nem armados”.

Sem querer dar mais audiência ao tema do que ele merece, diante da internet observamos um clamor de um povo (pequeno que se pretende grande, mas sabemos que não é) que, muito influenciado pela grande mídia, brada morte, indiferença e falta de conhecimento do tema, assim como suas causas e consequências.

Já dizia o barbudo Marx, “a história se repete como farsa”.  Estamos nós diante de uma nova tentativa de reduzir a tal maioridade penal com a PEC 171 (o número não é piada, ou seria?), na mesma época da confusão de quem não estava avisado sobre as novas leis do Rei e do papa de outrora.

Não sei você leitora ou leitor, mas pra essa festa falsa já até me convidaram, no entanto eu sei que é 1º de Abril.

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Diego Ferreira é Historiador e faz parte da Coordenação Nacional da Rede FALE
Publicado Originalmente no site da Escola Popular de Comunicação Crítica (ESPOCC)  . http://www.espocc.org.br/eu-sei-que-e-1o-de-abril/

terça-feira, 24 de março de 2015

“Tomara que um dimenor mate toda a sua família': o não-debate sobre maioridade penal

Carlos Alberto Bezerra Junior

Mergulhado num rasteiro índice de aprovação de um dígito, o Congresso Nacional tenta ressuscitar uma das jogadas de marketing mais bem sucedidas dos últimos tempos: a redução da maioridade penal. Turbinada por um conjunto de informações falsas, sob medida para alimentar sentimentos coletivos de vingança, ganhou status de verdade absoluta.

Basta apresentar um dado contrário ou se dizer contra para imediatamente ser acusado de defender a impunidade, na lógica binária de que, se você é contra a redução da maioridade penal automaticamente é a favor de nenhuma responsabilização para crimes cometidos por adolescentes. 

Isso quando a reação não vem em forma de ameaça, o paradoxo da pessoa que deseja publicamente o assassinato de toda a sua família em nome do fim da violência.

É importante diferenciar duas discussões quase opostas que têm sido colocadas no mesmo balaio. A primeira, que eu considero importante e legítima, é a melhoria e atualização do sistema de medidas socioeducativas para adolescentes, de forma a atender as demandas do mundo de hoje e solucionar as falhas identificadas em 25 anos de aplicação.

Ocorre que a discussão não é essa, a proposta é simplesmente passar os adolescentes para o sistema de punição adulto. Entre os criminosos adultos, a reincidência chega a 70%. No sistema destinado a adolescentes gira em torno de 20%, sendo mais próxima dos 13% no Estado de São Paulo. Na prática, a primeira consequência da redução da maioridade penal seria criar um curso profissionalizante de reincidência criminal para adolescentes.

Além disso, apesar de os defensores da medida darem a entender que 200% dos crimes são cometidos por adolescentes, o número é de 0,9%, caindo para 0,5% - isso mesmo, meio por cento - no caso de crimes violentos. Uma mudança que não afete 99,5% da criminalidade não teria efeito sobre a sensação de impunidade, que nasce de fatos como o de apenas 8% dos homicídios serem punidos no Brasil.

Há países que adotaram essa medida e o resultado sempre foi o aumento da criminalidade. Alemanha e Espanha voltaram atrás, colocando a maioridade em 18 anos de idade, com algumas responsabilidades apenas após os 21 anos.

Ao contrário do que se alardeia por aí, 70% dos países-membros da ONU fixaram esse limite em 18 anos, inclusive os tais "países desenvolvidos". Levando em conta o mesmo critério utilizado para dizer que os europeus punem a partir dos 13 anos, no Brasil, a idade para responsabilização penal é de 12 anos.

O conceito de pagar pelo crime independentemente da idade é adotado por países como o Paquistão, que levou a julgamento por tentativa de homicídio um bebê de 9 meses que atirou uma pedra em um policial.

Apesar dos fatos e contra eles, a redução da maioridade penal faz um sucesso retumbante. A última pesquisa Ibope mostra que 83% dos brasileiros são a favor da redução de 18 para 16 anos. Na pesquisa Datafolha, 93% dos paulistanos são favoráveis e, o mais intrigante, 52% acreditam mesmo que seria a principal medida para reduzir a criminalidade juvenil.

O mais impressionante é que nosso problema é o oposto: assassinatos de jovens. Emnota oficial, o Unicef lembra que "os homicídios já representam 36,5% das causas de morte, por fatores externos, de adolescentes no País, enquanto para a população total correspondem a 4,8%. (...) As vítimas têm cor, classe social e endereço. Em sua grande maioria, são meninos negros, pobres, que vivem nas periferias das grandes cidades."

Também são contrários à redução da maioridade penal o Unicef, o Ministério Público e a OAB. Entre os religiosos, somos contrários os evangélicos representados pela Visão Mundial, a Rede Fale e a Rede Evangélica Nacional de Ação Social, além dos católicos representados pela CNBB.

Defender a redução da maioridade penal é distorcer fatos em nome de surfar numa onda de vingança coletiva que faz um enorme sucesso. É a tentativa surreal de pisotear ainda mais o oprimido e justificar como ação para conter a mão pesada do opressor.

Claro que temos problemas e a população apresenta demandas e anseios legítimos, mas um debate movido a ódio e intransigência jamais trará respostas razoáveis. Um futuro melhor não se constrói com grito nem batendo no peito, é feito de diálogo democrático, aberto, sincero, com base nos fatos. Justamente aquilo que não faz sucesso nas redes sociais.

* O título desse post vem dos comentários recebidos na minha página no Facebook.
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Evangélicos Mobilizam Ato Público contra a Redução da Maioridade Penal



Um grupo de Organizações Evangélicas mobilizam no dia 25 de de março, Ato Público Contra A PEC 171/1993, que deseja reduzir a Maioridade Penal para 16 anos de idade. O evento acontecerá  na  Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, às 18:00 H.

Para Reinaldo Almeida, Coordenador do Monitoramento Jovem de Políticas Públicas(MJPOP), a PEC não toca no cerne do problema da violência. “É preciso atacar a causa da violência: a tremenda desigualdade social existente em nosso país e a falta de oportunidades para crianças, adolescentes e jovens, especialmente das periferias“, afirma Almeida. Luciana Falcão, da Lifeworks e da Rede Evangélica Nacional de Ação Social(RENAS), lembra que a “A PEC 171/1993 foi apresentada logo após a Chacina da Candelária, mas precisamente 27 dias. Sua finalidade era transformar em réus as vítimas vulneráveis. Uma descabida solução para a situação de violência naquela época e mesmo para os dias de hoje. Estamos enfrentando rebeliões em presídios e deterioração do sistema prisional".

Juliana Peres, da Rede FALE, entende que a redução da maioridade penal sequer é uma medida paliativa, pois “não contribui com a redução da violência, seja a curto, médio ou longo prazo. A parcela de menores que cometem crimes hediondos é ínfima, principalmente se comparada à parcela de adolescentes assassinada. Prisão não é a solução, mas sim o aprimoramento das resoluções do ECA, das casas de detenção de menores apreendidos, elas devem ser um local de máximas pedagógicas e afetivas e não de violências como vem sendo“

Desde 2013 a Rede FALE e o MJPOP entendem que reduzir a maioridade penal isenta o Estado do seu compromisso com a juventude, por acreditar que faltam políticas públicas que atendam a juventude brasileira e pelo não cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.
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Para refletir mais sobre o assunto:

Porque Somos contra a Redução da Maioridade Penal 


segunda-feira, 23 de março de 2015

Rede Evangélica Nacional de Ação Social se pronuncia contra a Redução da Maioridade Penal



A Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS) nascida há mais de 10 anos e que  congrega instituições sociais de diversas denominações cristãs e organizações baseadas na fé evangélica, divulgou uma carta para parlamentares evangélicos contra a Redução da Maioridade Penal. Recentemente a RENAS e organizações parceiras mobilizaram milhares de pessoas e igrejas nas cidades-sede da Copa do Mundo para atuarem na defesa e proteção das crianças numa campanha conhecida como “Bola na Rede: Entre em campo pelos direitos das crianças e adolescentes”.

Além de se pronunciar contra a Redução da Maioridade Penal, RENAS deseja mobilizar os seus parceiros para assinar uma petição virtual para  conclamar a Frente Parlamentar Evangélica no compromisso de se posicionarem contra a redução da maioridade penal,  na luta efetivação do ECA e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Para participar da Petição Online, clique aqui.

A Rede FALE, faz parte de RENAS e desde 2013 mobiliza parceria com o MJPOP contra a Redução da Maioridade Penal. A Rede FALE e o MJPOP entendem que reduzir a maioridade penal isenta o Estado do seu compromisso com a juventude, por acreditar que faltam políticas públicas que atendam a juventude brasileira e pelo não cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Embora alguns meios de comunicação jogam sobre os adolescentes a responsabilidade pelo aumento da criminalidade, apenas 5% dos crimes praticados no Brasil são cometidos por adolescentes. Enquanto isso, é nessa faixa etária que se sofre com a violência, problema que tem piorado nos últimos anos.



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Para refletir mais sobre o assunto:

Porque Somos contra a Redução da Maioridade Penal 



sexta-feira, 13 de março de 2015

O caminho é o amor

Leandro Barbosa
Saímos cedo a caminho de dois abrigos que cuidam de meninas vítimas de exploração sexual. Estava
ansioso, a expectativa de conhecer os projetos, ouvir as histórias e, acima de tudo, o simples fato de estar ali, foi suficiente para me fazer dormir pouco e ser recompensado pelo nascer do sol nordestino que apazigua a alma. A Kombi segue seu destino e quanto mais nos aproximamos dele trocamos o asfalto pela areia num caminho esburacado. Estacionamos, logo avisto a casa. Suas diversas cores parecem sinalizar o motivo pelo qual ela foi criada, “restaurar vidas e renovar a esperança”, diz o slogan. Um homem nos apresenta o projeto e suas instalações. O lugar aconchegante oferece o descanso que outrora foi roubado. Ele nos conta algumas histórias que espero transmitir com a mesma intensidade da conversa e incomodá-los assim como eu também fui.

*Sheila, 14 anos, era mantida como escrava doméstica por sua suposta mãe. As agressões eram constantes e insuportáveis. A menina carregava nos ombros o peso da escravidão. Seus dias se resumiam a faxina e aos cuidados da casa. Foi obrigada a trocar os cadernos e os livros por vassouras e rodos. Não tinha amigos porque não podia sair de casa, e ali não lhe faltavam tarefas “para brincar”.

A mãe adota gêmeos e vende um deles por R$1.800. Sheila, indignada com a venda do bebê e cansada das agressões, se aproveita de um descuido e foge. Procura uma delegacia e conta sua história. Chorando, relata as violações que sofria. Cada palavra lhe cortava alma. O coração pesado pelos traumas buscava meios de se resignar ao momento na busca por justiça.

Durante as investigações os policiais descobriram que seus documentos eram falsos, assim como os dos gêmeos, que nessa altura do campeonato já haviam sido resgatados. Mais um golpe na vida, a garota terá que conviver com a angústia de não saber suas origens. Com a dor por não saber de onde veio.

Hoje Sheila mora em um ambiente saudável, mas escondida, pois corre risco de vida. Os envolvidos na história são “peixes grandes”. Sua suposta mãe é assessora de político e responde em liberdade. A mulher que comprou o bebê é filha de político. A resolução da história segue a passos lentos numa terra que parece não ter lei. Enquanto o processo segue morosamente, Sheila vive no anonimato.

Em seu novo lar, a adolescente cria vínculos num ambiente onde outras garotas partilham da mesma dor. Juntas encontram forças para superar. Na casa, a lei suprema é o amor, elas já sabem o suficiente sobre a dor para terem que viver num ambiente hostil. Ali, se reinventam como família. Compartilham histórias e se encontram umas nas outras.

*Suzana também mora no abrigo e, com menos de 15 anos, já é cheia de histórias pra contar. Sua mãe frequenta uma comunidade religiosa do bairro onde morava. O lugar cheio de doutrinas e conceitos parece trocar a espiritualidade pela estupidez. Os conflitos entre elas se arrastam pelos dias, a menina não quer viver “segundo a lei dos crentes”. A adolescente quer usar suas roupas e maquiagens, um escânda-lo para a mãe, que tem sua paciência esgotada quando descobre que a filha teve relações sexuais. *Suzana é expulsa de casa e encontra lugar nas marquises da cidade.
Hoje no abrigo ela encontra refúgio e tenta compreender a mãe. A dor do abandono e a sensação de ter sido trocada começam a perder lugar para o amor que parece emanar de cada cômodo de seu novo lar.

Antes de partir as vejo sorrindo, ambas estão produzindo enfeites para decorar a casa. Estão felizes! Sentimento conhecido há pouco tempo, mas que encontrou morada no coração e alivia o fardo de cada dia.

História de um outro abrigo
Elas viviam em uma periferia de Recife, quatro irmãs, tinham o futuro ameaçado pela extrema pobreza. Moravam num barraco de lona. No chão um tablado. O mais perto que podiam chegar do luxo. O mau cheiro era constante, os dejetos da comunidade desciam ao terreno da família. O quintal era uma fossa. Nos dias de chuva as coisas pioravam, o terreno alagava e o tablado era coberto por fezes. Conheciam de perto a miséria.

Seus pais, para suprirem o vício, lhes apresentaram o oficio mais antigo do mundo. Elas faziam as preliminares e a mãe terminava o serviço. O salário era um pouco de comida e os pais saciados pelo crack.

Resgatadas pelo Conselho Tutelar, as meninas foram levadas para um abrigo. O lugar, conhecido como “casa do amor” pelas autoridades locais, oferece todo cuidado necessário e, até o dia da entrevista, com as quatro, passaram a cuidar de nove crianças. Seus métodos de trabalho se baseiam em uma coisa, AMAR. O casal que dedica sua vida ao cuidado de todas que estão ou passam ali, transformam a casa num ambiente familiar saudável. As crianças se sentem seguras e como consequência mudam o comportamento. Se abrem ao tratamento necessário para superarem os traumas e encontram a liberdade por terem em quem confiar.

A mais nova das quatro irmãs corre pela casa, passa por todos os cômodos mostrando as fotos que tirou com a nova câmera do abrigo que revela fotos na hora. Ela, que não engatinhou, pois sua casa não lhe dava tempo ou condições pra isso, aproveita cada canto de seu novo lar. Conversamos num dialeto que ela inventou, parece que conseguimos nos entender. Logo me mostra que também sabe contar e dispara: “1, 2, 3, 4,5… 10, 20, 22, 27”, me desafiando a ser mais rápido que ela.

Antes de eu ir embora pergunto a uma das meninas que estava com uma foto na mão: quem são essas pessoas? Ela me responde: é a família. Peço para ver e ali estão as nove com um sorriso do tamanho do mundo e com uma paz nos olhos difícil de descrever. Enfim encontraram o refúgio que a maldade e a vulnerabilidade as impedia de ter.

No caminho de volta meu choro irrompe o silêncio na Kombi. Não consigo controlá-lo. As feridas que me foram expostas me tocaram e de alguma maneira me feriram também. Durante a conversa perguntei ao responsável por um dos abrigos: Qual é o segredo para uma mudança tão rápida em corações tão machucados? Ele me olhou nos olhos e disse: “o amor”. Sorriu e continuou: “o caminho é o amor”.

*Informações e características foram omitidas e/ou modificadas por motivo de segurança
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Leandro Barbosa é cristão e coordena a ONG Atos de Justiça. É apoiador do FALE em BH.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Para além da Maioridade Penal

Alexandre Gonçalves*
De tempos em tempos a história se repete: algum artigo ou editorial de um grande jornal brasileiro, pretendendo-se isento de “paixões e ideologias”, apresenta sua posição em relação ao ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), quase sempre reduzindo sua atenção a um ponto específico: os adolescentes em conflito com a lei e a consequente necessidade da redução da maioridade penal. O editorial em questão, cujo título é “ECA não recupera menor infrator e desprotege sociedade”, é do jornal O Globo, de 15 de fevereiro de 2015.

Não há dúvidas que a questão da maioridade penal mereça ser continuamente debatida pela sociedade, mas isolada, ela tende minimizar a responsabilidade do poder público em zelar pelo bem estar integral das crianças e adolescentes. Mais do que uma abstração, esse conceito de bem estar integral envolve a implementação de ações e políticas que garantam um desenvolvimento físico, emocional e intelectual saudável às crianças e adolescentes, além de proteção contra quaisquer violações desses direitos. Enquanto tivemos nossos olhos voltados exclusivamente para uma discussão na esfera criminal, chamada frequentemente de “situação irregular”, não vamos compreender (e nem nos preocupar) com as demais questões envolvidas na implementação daquele que é um exemplo internacional de legislação.

O ECA nunca foi pensado para “recuperar menor”, como o editorial equivocadamente sugere. O título do artigo é pobre conceitualmente, porque não compreende o papel do estatuto em sua inteireza, e tendencioso ideologicamente porque reduz a discussão em torno da criminalidade, insinuando que o ECA “protege menor infrator“. O editor escreve que “a lei revelou-se incapaz de fazer o poder público cumprir obrigações no resguardo de jovens infratores“!! O ECA, assim como qualquer outra legislação, depende do compromisso do poder público e da sociedade como um todo para colocá-la em prática, e não o contrário. A Lei obriga, mas diante da sistemática negação de seu cumprimento, muitos concluem que é mais fácil dizer que ela é ineficaz do que cobrar providências daqueles que são os responsáveis por implementá-la; no caso do ECA, todos nós! Falamos exaustivamente – muitas vezes desqualificadamente – sobre a necessidade de punição do adolescente em conflito com a lei (e não “menor infrator”), mas discutimos pouco a responsabilização do Estado (em todas as esferas) e da sociedade na efetivação do ECA. Invertemos a lógica! Tente pensar a afirmação acima do editorial em relação à Constituição Brasileira. Diante do fracasso em cumprí-la, vamos simplesmente dizer que ela é fraca, paternalista e repleta de falhas? Vamos nos eximir da  responsabilidade de colocá-la em prática e dizer que o caos se instaurou porque a lei é “branda”, e não porque não nos comprometemos o suficiente com ela? Tais perguntas não querem sugerir que não exista a necessidade de aprimoramento das leis, pois de fato, existe, mas apenas questionam a inversão da lógica da responsabilização no cumprimento delas. O ECA é ótimo exemplo dessa dinâmica de aprimoramento, cuja revisão de conceitos, textos e expressões, demonstram que não se trata de uma lei inflexível e ultrapassada, como o editorial de O Globo pretende mostrar.

O ECA, do ponto de vista legal, é um documento de vanguarda. No entanto, como qualquer lei, depende não somente que as políticas públicas atreladas a ele de fato aconteçam, mas também de um questionamento dos paradigmas que mantemos sobre as crianças e adolescentes. Culturalmente, como diz o psicólogo e amigo Gustavo Sales,  parece que estamos alguns milênios atrasados, porque socialmente nós endossamos certos paradigmas que supostamente pretendemos superar, como o conceito da criança como uma “propriedade” dos pais e tutelada pelo Estado, e não como sujeito de direitos e pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Há um conflito direto e constante entre esse paradigmas. Um outro paradigma poderosíssimo é o já mencionado “menor infrator“, cuja atenção está voltada para a “situação irregular” da criança e do adolescente, ignorando todo um contexto que produz e sustenta tal situação. Gustavo aponta o paradoxo ao afirmar que, se por um lado pedimos avanços (seja no texto da lei ou na efetivação das políticas públicas elaboradas com base nessa mesma lei), por outro não rompemos de fato com os velhos paradigmas. Tratamos, social, política e economicamente, a criança e adolescente como objetos de posse da família ou de intervenção do Estado, e não como pessoa em condições e necessidades específicas. Nos fixamos no que a criança e o adolescente fazem de errado, e não no que nós adultos deixamos de fazer, enquanto sociedade, para garantir que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados. Ou seja, gostamos de debater o ECA, mas ainda não nos desapegamos dos paradigmas do antigo Código de Menores, que só olhava para o “menor” quando ele estivesse fora da esfera moral estabelecida pelo Estado: fora da escola, fora de casa, vivendo nas ruas ou cometendo crimes, ou seja, quando estivesse incomodando a sociedade.

Por exemplo, o editorial de O Globo se mune de estatísticas para alarmar a sociedade, fomentando uma sensação de descontrole social, fruto de uma suposta impunidade que o ECA provoca. Mas onde é que tudo isso começa mesmo? O governo federal acaba de cortar cerca de R$ 8 bilhões da educação, praticamente todos os governos estaduais  e municipais tem enormes dificuldades em elevar o nível da escolarização e qualidade de ensino. Tenhamos o exemplo do governo do estado de São Paulo em vista, que recentemente tem fechado salas de aula a ponto de colocar 80 alunos no mesmo espaço, isso sem falar da desvalorização do professor, da falta de acesso à cultura e oportunidades reais de mudança de vida, não somente para os adolescentes (erroneamente[?] chamados de “menores” no artigo), mas também para suas famílias.

O que põe em xeque a eficácia do ECA não é o 001-002“paternalismo do Estado”, nem a curva ascendente da criminalidade, como diz o editorial, mas a negligência sistêmica  em cumprir o que está previsto em lei e uma tendência constante de criminalização da juventude. O editorial ainda diz que o ECA é “pródigo em listar direitos de menores de idade, [percebem o velho paradigma?] mas parco em lhes cobrar responsabilidades.” Só diz isso quem não leu ou não compreendeu o objetivo do estatuto, que apresenta medidas sócio-educativas (debatíveis, é verdade) as mais variadas para adolescentes em conflito com a lei. Como disse uma vez o amigo Gustavo, “não conheço nenhum adolescente que foi passar férias na Fundação Casa”. Além do mais, o próprio conceito de direitos (e não deveres) da criança e do adolescente é a porta de entrada pela qual deve-se abordar o estatuto: o princípio da reciprocidade. Ou seja, sendo esses direitos individuais e coletivos, as crianças e os adolescentes que deverão ter seus direitos reconhecidos e respeitados são também os indivíduos que deverão reconhecer e respeitar os direitos de outras crianças e adolescentes. Esse é um processo educativo de médio e longo prazo, cuja responsabilidade não poderá ser delegada a outrem, senão assumida integralmente pela família, sociedade e Estado. Mas no tocante à questão da criminalidade, cabe perguntar: se nem o sistema penitenciário é bem sucedido na ressocialização de detentos adultos, por quais motivos se cobra tanto que as instituições como a Fundação Casa sejam melhores, sendo que estas instituições tem o mesmo Estado como responsável pela qualidade do serviço? Além disso, há outras questões de fundo, como a pobreza e o status dos envolvidos. Compare os crimes de colarinho branco ou cometidos por adolescentes ricos com aqueles cometidos por adultos e adolescentes negros e pobres. Agora verifique a taxa de condenação e encarceramento entre essas populações. O Estado brasileiro – que já tem a terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás somente de EUA e China – é que é pródigo em descumprir com suas obrigações, e tenta nos convencer de que a redução da maioridade penal, que jogará um número maior de adolescentes nas prisões para lá apodrecerem, é a solução para a acabar com a criminalidade.

Não se trata, evidentemente, de simploriamente dizer que o Estado é o grande produtor da criminalidade, embora não se possa negar que tem boa parcela de responsabilidade por ela. Também não se pode negar que testemunhamos diariamente a realidade de crimes (por vezes hediondos) praticados por adolescentes, cujas motivações são as mais distintas. Mas não nos enganemos: sempre haverá crimes de grande impacto cometidos por adolescentes que serão cinicamente e oportunamente capitalizados por algum governante a fim de comover e convencer a população de que a redução da maioridade penal é a solução para a onda de violência. No entanto, esse mesmo governante pouco ou nada discutirá sobre o que de concreto e prático seu governo faz para a efetivação do ECA no que diz respeito ao desenvolvimento integral de todas as crianças e adolescentes. A doutrina da prioridade absoluta, por exemplo, significa, dentre outras coisas, a disponibilidade de recursos públicos, e a falta deles é uma ótima medida para observar o quanto o Estado viola os direitos das crianças e adolescentes. Como certa vez bem disse a professora e defensora do ECA, Maria Amélia Azevedo, as crianças precisam ser também prioridade no orçamento público.

Entretanto, quando se noticia o envolvimento delas com o tráfico ou com algum crime extremamente violento, somos bombardeados por estatísticas que no final das contas acabam responsabilizando somente o indivíduo (o vagabundo, o preguiçoso, o trombadinha, o psicopata juvenil) ou culpabilizando a família pela “má educação” que deu ao/à filho/a. Não consideramos as variáveis que levam a cada indivíduo a cometer um crime, e concluímos apressadamente que se trata simplesmente de uma questão de decisão pessoal. Assim somos induzidos a crer em um padrão, no qual todos os adolescentes, e especialmente aqueles em conflito com a lei, são indevidamente inseridos. Generalismos do tipo “o adolescente sabe muito bem o que está fazendo”, “se tem idade para votar, tem consciência sobre seus atos”, etc., fazem parte dessa dinâmica de culpabilização exclusiva do indivíduo que não considera outros fatores que podem ser determinantes para suas atitudes.

Enfim, não há respostas fáceis, mas penso que o foco na criminalidade é reducionista, equivocado, e atende a muitos interesses, menos os daqueles chamados no papel de sujeitos de direito, mas que na prática acabam servindo apenas como bodes expiatórios da ineficácia e negligência do Estado e da sociedade (em geral, porque há que se reconhecer que existem ótimas iniciativas em curso, boa parte delas executadas pela sociedade civil).

Portanto, as discussões pontuais sobre a violência cometida por crianças e adolescentes devem ser precedidas de uma discussão mais ampla sobre a violência cometida contra crianças e adolescentes, especialmente a negligência institucional que adia a implementação integral do ECA. Qualquer debate que esteja focado na criminalidade é míope em relação às condições que geram e mantém essa criminalidade.
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Alexandre é Consultor na Programa CLAVES Brasil e colaborador da Rede FALE