Silvana Bezerra Magalhães
Olhar é uma coisa complicada, a gente vê o que quer ver, a
gente não vê o que não quer. Os olhos são a entrada da alma. Não é por acaso
que Jesus falou dos olhos, se os olhos forem bons, tudo se ilumina, se os olhos
forem maus você só vê trevas nos outros. Você vê as trevas dos seus olhos
cegos...
Hoje encontrei de novo o P., menininho pequeno, cabelo por
cortar, pele negra esbranquiçada e ressecada pelo frio aqui da serra. Corpinho
magro, ressequido pela pobreza e também pela falta de carinho, nunca ninguém se preocupou em hidratar sua
pele ou sua alma. Olhos espertos, espertos e tristes, tristes e desconfiados. A
mesma idade do meu filho Pedro, oito anos, a mesma inicial dos nomes. As
semelhanças acabam aí. O meu Pedro aprendeu a ler "sozinho" aos quatro
anos. Claro, "sozinho",
apesar dos livrinhos de tecido que com seis meses já líamos pra ele, das letras
no quarto, da estante cheia de gibis. O P. não sabe ler, "cabeça fraca" como dizem os mais simples... Nunca teve
um gibi, nem uma voz pra contar histórias ou canções de ninar antes de dormir.
Chego na escola onde ele estuda, estrada de chão, um quadro
e carteiras, os computadores nunca funcionaram, o P. nunca mexeu num tablet ou
computador, mas vê um todo dia no comercial da TV e sonha em ter também.
Pergunto para o P. sobre a mãe dele: "Ah, minha mãe ainda tá
bebendo, tia".
Pergunto então sobre seus sonhos. Sempre pergunto sobre os
sonhos das crianças. Os sonhos delas me explicam muito sobre o mundo em que
vivem. Criança tem que viver num mundo em que seja autorizada a sonhar com
nuvens de algodão doce, com princesas e dragões.. Já vi crianças que o maior
sonho era ser manicure, ganhar cesta básica, o pai ficar bem de saúde, isso não
é sonho pra criança.
Os sonhos das crianças desse lado da cidade são sonhos
possíveis. Nunca ouço sobre ser astronauta ou arquiteto. Esses são os sonhos
dos meus filhos. A gente só sonha sonhos possíveis, ou impossíveis quando
vivemos num mundo que nos dá licença pra sonhar. Quem sonha não precisa pensar
na sobrevivência o tempo todo. Mas o P. tem que pensar em sobreviver e sofrer o
menos possível , se der.
"Meu maior
sonho é que ela pare com a cachaça, tia". Esse é o sonho do P. Na verdade ele não sonha nada pra ele, ele
sonha um sonho lindo para a mãe, sonha com a mãe do comercial de margarina que
ele viu na TV, ou apenas com a mãe por perto de verdade, sem ser levada pelos
devaneios etílicos. E junto com a cachaça da mãe a desgraça ainda vem
acompanhada do distúrbio mental, da mendicância, do cair na rua, se machucar, ser machucada, abusada. "As vezes ela vai pra casa tia, outras
ela dorme da rua. Eu fico triste...". E usou uma palavra elaborada
para menino pequeno: "eu me sinto
péssimo tia..."
O que será que sente um menininho de oito anos que vê a mãe
jogada na rua e se diz péssimo? Nessa hora a gente engole seco, respira fundo,
continua conversando para o silêncio não virar lágrimas. E fica pensando se
deveria ter perguntado sobre sonhos num mundo em que não se permite sonhar, só
sobreviver.
Até o ano passado ele morava com a mãe. Agora a tia
resolveu criar, aquela solidariedade que só os "desgraçados do mundo"
sabem compartilhar. Família de onze num pequeno apartamento doado para as
vítimas da enchente, dois dos filhos com
deficiência, um não fala, o outro tem problema, sofre de convulsão toda hora. E
a mocinha da casa as vezes vende o corpo pra ganhar uns trocados, pra sentir
que alguém a quer, também não sonha, sobrevive. A caixinha com os sonhos
cor-de-rosa e a roupa de princesa há muito empoeiraram num canto esquecido da
alma.
Com tudo isso ainda encontraram um cantinho e um colchão
para o P. Ali ele pode estar mais protegido do que morando na rua com a mãe que
tem "problema de cabeça".
Só que nessa luta do dia a dia não dá tempo para lembrar
que o menininho de oito anos ainda é uma criancinha, que precisa de proteção.
Não dá tempo de lembrar disso tudo quando se tem que sobreviver. Então a rua
cuida, ou descuida. Toda vez que vou lá no bairro fora da hora da escola
encontro P. na rua, com os meninos maiores, solto pelas desventuras de se criar
sozinho.
"Tia eu não
gosto de apanhar, os grandes me batem sempre", ele me conta. E pra
conter a raiva do mundo, ele também bate nos pequenos. Dos pequenos ele pode
ser o chefe para se livrar do ódio da vida, da tristeza daquela semana que a
mãe não voltou da rua, da raiva e da dor da surra dos grandes.
Mas dizem por aí que todos tem as mesmas oportunidades não
é mesmo? Não é isso que ecoa pela mídia, pelas redes sociais, pelas falas de
tantos, até ditos seguidores do Nazareno? "É só querer?"
E eu lembro do meu Pedro, que sonha em ser astronauta, que
lê livros de duzentas páginas, que fala francês, brinca de lego e gosta de
queijo "brie". Iguaizinhos, mas separados por um fosso de
desigualdade já antes de nascerem...
É mentira, a vida não é igual para o P. e para o meu filho.
Os olhos de muitos jogam o P. no fosso do mérito. Não é uma questão de escolha
dele.
A escola do P. tem quase trinta pares de olhos curiosos,
uma sala pequena, cinco séries diferentes estudam numa sala. Só lembrando, aqui
é sudeste, onde me contam ser a região mais rica desse imenso Brasil. A
professora dele é a grande heroína que tenta, sofre, luta, viaja todo dia
atravessando a cidade pra tentar salvar o P. Mas é uma luta tão difícil, um
contra o mundo.
E insisto de novo em perguntar sobre o sonho. Pergunto para
o P. aquela pergunta boba que adulto gosta de fazer: o que ele quer ser quando
crescer. A prima dele, que também estuda na mesma sala, já tinha me dito que
volta e meia ele fala que quer ser bandido.
Onde o P. mora o bandido tem a moto mais maneira, o carrão,
a roupa da moda, as meninas gostosas. E o bandido é "gente fina", dá bala, chocolate às vezes, tem cara de
gente feliz, tem cara de chefe, de dono do pedaço, as vezes P. sonha que o
bandido é o pai que ele nunca conheceu.
Então o P. me olha, sorri maroto e não me conta que está
pensando em ser bandido. Depois abaixa os olhinhos marotos, que logo ficam tristes de novo. Os olhos
perdem o brilho do sonho, o de ser bandido e ele pensa no mundo possível. Ainda
de olhos abaixados e bem baixinho me responde: "quando eu crescer eu vou
capinar"... Eu pergunto de novo para ter certeza do que tinha ouvido:
"quero capinar" ele fala ainda de cabeça baixa. Cabisbaixo com quem
se contenta com a desgraça, que se contenta com o que ele sabe que é a escolha
dos fracassados no mundo do mérito.
O P. sabe o que é possível, as escolhas são poucas. São as
duas coisas que ele pode ser naquele mundo: capinar como o tio, viver na
miséria sem dentes e mãos doloridas, cheirar a morte do veneno diário na
plantação de flores da região ou virar bandido. São os mundos que nós
permitimos que ele conheça, são as opções de mundo que ele tem...
E eu saio de lá com o coração apertado, do jeito que só
quem sabe o que é a desgraça do mundo vai entender. Saio de lá com uma certeza doída de que se tivesse nascido P. também
escolheria ser bandido...
Essa história é verdadeira, se passou em algum lugar na
serra fluminense. Não sei escrever ficção. Que pena que não é ficção. Histórias
parecidas com essa se repetem todos os dias, agora, hoje, nesse instante em
tantos cantos dessa cidade e desse país.
Nesse mundo que aos poucos vai transformando crianças em
"monstros".
Contei isso para alguns que choraram comigo pelo P.
O que será que falaremos dele daqui a oito anos, quando
tiver 16?
Silvana Bezerra
Magalhães é evangélica, Professora universitária do CEFET-RJ e Doutora em
Educação
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